Curso Técnico Integrado ao Ensino Médio em Magistério Intercultural Indígena

O projeto do Curso Técnico Integrado ao Ensino Médio em Magistério Intercultural Indígena, proposto pelo Campus Tarauacá do Instituto Federal do Acre (IFAC), em parceria com a Universidade Federal do Acre (LabInter) e prefeituras municipais de Jordão e Marechal Thaumaturgo, procura atender à demanda de jovens e adultos indígenas, excluídos da educação básica, e, no entanto, em exercício no magistério do Ensino Fundamental em suas aldeias, através da oferta de uma formação profissional, que é fundamental na economia e na cultura atuais dos povos indígenas. Compreende-se a educação escolar indígena como uma das modalidades dos processos de produção e circulação de conhecimentos no contexto das comunidades indígenas. É fundamental não apenas para a educação e preparo das novas gerações para as relações interétnicas e interculturais com a sociedade brasileira mais abrangente, mas também para a reversão dos processos históricos de supressão de práticas culturais e linguísticas tradicionais. Foram séculos de políticas de genocídio, etnocídio e assimilação forçada, que também caracterizaram as escolas em área indígena no período anterior à promulgação da Constituição de 1988. Nesse contexto, os professores indígenas são, na maioria das vezes, os encarregados de fazer a ponte entre os dois mundos em que seus povos vivem: o tradicional e o moderno, o oral e o escrito, a troca e o comércio, os diferentes sistemas de pensamento. A formação profissional de nível médio oferecida será no sentido de minimizar a enorme defasagem em que o sistema da educação escolar indígena se encontra no Acre. Há mais de vinte anos o Estado não proporciona formação adequada aos professores indígenas, em franco descumprimento aos ditames constitucionais e demais legislações que normatizam as políticas de educação escolar, deixando que a qualidade do ensino nas escolas das aldeias se torne um caso de extrema preocupação para as instituições tradicionalmente responsáveis pela qualidade da Educação Básica no país. As universidades e os institutos federais, através da formação de professores e da produção de materiais didáticos, em parceria com as secretarias de educação dos municípios de Jordão e de Marechal Thaumaturgo, poderão realmente ajudar os professores a ascender na escolaridade e na formação profissional, para em seguida continuarem seus estudos em licenciaturas oferecidas pelas mesmas instituições. Acreditamos que os órgãos governamentais e a sociedade civil devem se responsabilizar, através de um programa conjunto, pelo zelo e cultivo da escola indígena, para que as crianças das aldeias não sofram a mesma colonização violenta que seus antepassados tiveram que superar.

Para muitos professores indígenas do Acre, os processos formativos foram fragmentários, espalhados em cursos com carga horária conteúdos insuficientes para garantir sua titulação em nível fundamental ou médio. Uma minoria de professores indígenas concluiu o Ensino Superior, ou busca a pós-graduação. Há professores que sequer completaram o Ensino Fundamental. Isto é mais acentuado nas comunidades cujo acesso é mais difícil e demorado. Esses professores encontram dificuldades também no recebimento e na produção de materiais didáticos, seja por falta de formação específica ou de recursos. Tais problemas impedem que a escola indígena cumpra seu objetivo de fortalecer as práticas culturais de cada povo, garantindo os seus direitos constitucionais. A nossa Constituição Federal de 1988 preconiza para a educação indígena o seguinte: “Artigo 210 – Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. §.2. O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.” Para cumprir o que determina a Constituição, entretanto, é preciso que se forme um contingente de professores indígenas qualificados, capazes de construir projetos político pedagógicos para suas escolas de caráter intercultural (contemplando matrizes curriculares nacionais e próprias à cada etnia e comunidade em diálogo), (multi)bilíngue (de acordo com a situação sociolinguística de cada comunidade), diferenciada (com uma organização diferente das escolas urbanas regulares) e específica (aos modos de organização social e práticas culturais de cada povo). Não se pode presumir que basta ao professor pertencer a uma dada etnia e comunidade que ele já estará automaticamente qualificado para atuar em sala de aula, é preciso que ele tenha uma formação que lhe permita tornar-se pesquisador de sua própria cultura, versado nos conhecimentos que lhe caberá sistematizar e compartilhar com suas turmas de estudantes, capaz de produzir boas aulas, atividades e materiais didáticos, em diálogo tanto com os mestres e conhecedores de seu povo, quanto com as diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar indígena. 

Para demonstrar a situação da educação escolar indígena no Acre, alguns dados expressam justamente que, apesar da legislação prever que o Ensino Fundamental no Brasil também deve ser contemplado com profissionais de nível superior de escolaridade, quase metade dos professores contratados pelo Estado e pelos municípios do Acre não possui sequer o Ensino Médio completo (UFAC, 2019). Assim, este projeto pedagógico busca atender à demanda que os professores indígenas, através da Organização dos Professores Indígenas do Acre (OPIAC), têm explicitado de diversas formas às instituições federais de ensino (UFAC e IFAC), conforme escuta dos pesquisadores do Laboratório de Interculturalidade, sediado no Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, que congrega professores e estudantes de diversas instituições de ensino superior (IFAC, UFAC, UFBA, UFMG, UFSB, UFBA, UNIR), além de técnicos de outras (Comissão Pró-Indio do Acre, FUNAI, secretarias estaduais e municipais de educação, organizações indígenas). Baseado nos diagnósticos empreendidos por suas atividades de pesquisa, o Laboratório de Interculturalidade da UFAC vem, portanto, apresentar ao sistema escolar acreano uma alternativa metodológica para sanar o imenso descompasso da escola indígena, pelo menos no que tange à capacitação e formação básica dos professores para trabalharem com o (multi)bilinguismo e a interculturalidade a que são submetidas suas sociedades atualmente. Objetivando imprimir densidade à justificativa da oferta do Curso em pauta, é válido ponderar os seguintes aspectos, na perspectiva da demanda pela escolarização dos professores indígenas: 

– Necessidade de professores minimamente qualificados para a implementação do sistema público de ensino fundamental nas escolas indígenas do Acre, de acordo com o Artigo 31 da Lei Estadual n° 3467/2018 (dispõe sobre a regulamentação das escolas e professores indigenas insituídos e mantidos pelo Poder Público), que admite “como formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, modalidade normal, preferencialmente em cursos interculturais e de magistério”; 

– Insuficiência de professores com a devida escolarização de nível superior para assumirem o ensino fundamental nas aldeias indígenas, o que, no caso do Acre, nos leva a reapresentar a proposta de oferta desse curso, considerando o disposto no parágrafo 1º do Art. 4º da Resolução CNE/CEB nº 01/2014; 

– Carência de profissionais para gerirem os respectivos sistemas municipais de ensino, o que causa imenso prejuízo na vida escolar de cada aldeia, sendo verificados casos de total desorganização, com perdas injustificáveis no histórico escolar dos estudantes indígenas; 

– Urgência do investimento na melhoria da qualidade da educação escolar nas terras indígenas; 

– Necessidade da titulação dos professores em nível médio, para que possam progredir em seus itinerários formativos, alcançando o nível superior de ensino, em cumprimento à legislação brasileira, Lei de Diretrizes e Bases – Lei 9394/96.

Desse modo, levando em consideração os municípios de Jordão e Marechal Thaumaturgo, pelo menos na primeira etapa do curso de Magistério Indígena, considera-se que A população indígena do Acre é ainda mais significativa nos municípios do Jordão e de Marechal Thaumaturgo: no Jordão são 8.159 pessoas e em Marechal Thaumaurgo, 2.162. Segundo a Secretaria Municipal de Educação, no município do Jordão a população indígena se distribui em 33 aldeias, cada uma com sua “escola”. Em 2019, foram contratados 58 professores para os 1066 alunos do Ensino fundamental, sendo que 28 deles não possuem o nível médio de escolaridade. Em Marechal Thaumaturgo, a situação dos professores não é muito melhor: 25 professores contratados em 2019 não possuem o nível médio, sendo que 8 deles nem completaram o fundamental, segundo dados informados pela Secretaria Municipal de Educação de Marechal Thaumaturgo, o justifica, com urgência, o desenvolvimento de um curso a nível de magistério indígena.