Este não é um texto historiográfico, mas um clamor. E como tal, pretendo começá-lo a partir de um outro texto, para que com isso se consiga estabelecer uma narrativa que não seja apenas histórica, mas calcada na empatia. Em maio de 1975, o historiador francês Pierre Vidal-Naqet publicou um artigo intitulado “Israel-Palestine: la frontière invisible” no periódico Le Nouvel Observateur. O artigo era fruto de uma visita do historiador a Israel e aos territórios ocupados. Na época, o Estado de Israel ocupava também o Sinai, como resultado da Guerra dos Seis Dias (1967), só cedendo o seu controle novamente ao Egito após os acordos de Camp David.
Vidal-Naqet era judeu, mas estava profundamente desgostoso com a incapacidade dos dissidentes israelenses em desafiarem as posições do establishment que antagonizavam diretamente contra os palestinos e demais povos árabes. Para ele, o problema residia na rejeição da dimensão histórica que o Estado de Israel instituía – e, aceitá-la, seria compreender que os judeus que ali existiam não estavam na região por essência, ou por metafísica espiritual, mas por uma série de contingências, de “acidentes históricos”. Dessa forma (e somente desta forma, ele frisava), os palestinos poderiam ser vistos como companheiros. O problema, contudo, é que até aquele momento, afirmava o historiador, a política do movimento sionista era de negar a própria existência dos árabes que viviam nos territórios de Israel e da Palestina.
Para os estudiosos da questão Israel e Palestina, a fala de Vidal-Naqet não é surpreendente – embora certamente ela antecipe muitos textos canônicos sobre a questão palestina. Historiadores israelenses como Ilan Pappé, Shlomo Sand, Tom Segev, entre outros, já expuseram as mazelas de uma lógica colonial que estaria nas origens do próprio movimento sionista, tão nitidamente expressa no slogan “uma terra sem povo para um povo sem terra”. Historiadores palestinos como Nur Masalha ou Abd al-Jawad destacam que tal perspectiva nega a História e a própria memória dos palestinos, entendidos, nos termos de Edward Said, com uma identidade nacional diaspórica em suas próprias origens, limitada no próprio ato de representação de si.
O texto do autor de “Os assassinos da memória” é, contudo, um alerta para o chamado “mundo ocidental”, clamando para que ele se responsabilize pelas relações entre israelenses e palestinos, especialmente diante da tragédia do Holocausto – “antes que um desastre aconteça”, anuncia o texto de 1975.
Infelizmente, o desastre aconteceu – e, a dizer, acontece cotidianamente em Gaza. O ato terrorista cometido pelo Hamas no dia 7 de outubro (o maior ataque contra judeus desde o Holocausto) serviu como justificativa para desencadear uma nova guerra de conquista sobre territórios palestinos. Enquanto este texto é escrito, a imprensa internacional divulga um suposto plano do Ministério da Inteligência de Israel que pretende remover todos os palestinos de Gaza em direção ao norte da península do Sinai. Se este plano for efetivado, essa será a maior diáspora palestina, superando a Nakba, de 1948.
Enquanto isso, o Estado de Israel e seu governo anunciam que sua guerra é contra o Hamas, mas não contra os palestinos – não obstante, as cifras de civis mortos continuam se empilhando, com direito a ataques das Forças Armadas Israelenses contra hospitais e até mesmo campos de refugiados em Gaza. A tragédia dos eventos não começou agora, mas estamos diante de uma violência cuja desproporcionalidade se dá justamente nos ataques contra civis, sendo que a única saída que Israel propõe é o deslocamento forçado de milhões de pessoas enquanto Gaza é destruída.
Se, contudo, o Ocidente pode se assegurar de que fracassou de forma retumbante na condução das relações Israel-Palestina, há ainda alguma esperança no “Extremo Ocidente”. Bolívia, Colômbia e Chile denunciaram a agressão israelense aos campos de refugiados e aos civis, o que gera maiores tensões diplomáticas. O Brasil foi o principal articulador da mais robusta proposta de cessar-fogo – não obstante ela ter sido vetada pelos Estados Unidos no Conselho de Segurança da ONU. Ainda assim, é preciso que se afirme que é muito pouco diante do desastre humanitário que se instituiu na região.
A sangrenta história de Gaza é a história dos palestinos que seguiram em seus territórios depois de 1948: que inicialmente ficaram sob controle dos egípcios, mas que em 1967 tiveram de lidar com a ocupação israelense do território que foi o epicentro da primeira e da segunda Intifada; que viram a retirada das tropas israelenses em 1994 por ocasião dos acordos de paz de 1992; que viram o Hamas crescer politicamente na região – com o aval das forças israelenses, voltadas para o enfraquecimento do Fatah entre os palestinos. É a história de 2.4 milhões de pessoas que, enquanto escrevo este texto, vivem o desastre.
As palavras de Vidal-Naqet falavam de um desastre enquanto futuro, mas não é exagero algum entendê-lo como algo que precede 1975 – afinal, para os próprios palestinos, o termo “Nakba” traduz-se como “desastre”. Contudo, naquele momento, o historiador francês mudava sua perspectiva a respeito de Israel e da sua própria identidade judia. Essa mudança ressoa diretamente em outro texto, de outubro de 2000, em meio à Segunda Intifada. Trata-se de uma carta intitulada “Judeus franceses em defesa dos direitos dos palestinos”, publicada no Le Monde e assinada por Daniel Bensaid, MarcelFrancis Kahn e Stanislas Tomkiewicz – bem como pelo próprio Pierre Vidal-Naqet.
Nesta carta, ao denunciarem as agressões israelenses, enfatizando a desproporcionalidade do confronto, anunciavam que “uma corrida rumo ao desastre se iniciava” e denunciavam, por sua vez, “a espiral fatal de etnicização e confessionalização do conflito”. Mas diante do retorno dos argumentos de 1975, a carta apontava uma saída: uma concepção de fraternidade árabe-judia, que só poderia ser atingida com o reconhecimento das resoluções da ONU, com o reconhecimento do Estado palestino e assegurando o direito de retorno para todos os palestinos que foram expulsos de suas terras. Uma saída otimista e que, infelizmente, parece tão distante em nosso tempo.
Talvez fosse exigir demais que, diante da responsabilidade do Ocidente para com tantos genocídios (do colonialismo à Shoah), fosse ele o articulador de uma paz, o desencadeador de uma fraternidade árabe-judia. Mas se o Ocidente efetivamente fracassou nessa tarefa, lançando milhares de famílias a um desastre sem fim, talvez caiba justamente ao Sul Global um grito potente, uma voz que diga “não em nosso nome” e que se recuse a entrar nessa espiral que articula a limpeza étnica de Gaza. O chamado para as historiadoras e os historiadores brasileiros é justamente de poderem dizer, sem vacilações, que o direito de defesa não preconiza o massacre de civis. De dizer, enfim, “não em nosso nome”.
Por Fernando Pureza
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Autor do livro História da Ásia (2023)